segunda-feira, 14 de março de 2016

"O Cultivo de Flores de Plástico", de Afonso Cruz


«No fundo é isso. Ninguém nos vê. Somos invisíveis. A miséria é uma poção de invisibilidade. Quando as roupas ficam rotas, quando estendemos uma mão, puf, desaparecemos. Somos as pombas dos ilusionistas. Isto dava para um negócio, dava para ganhar a vida com os turistas. Levava-os a ver fantasmas numa cidade assombrada. 

Levava-os a verem-nos. Olhem, damas e cavalheiros, meninos e meninas, esta é a Lili, tem saudades de ser criança, tem no nariz o cheiro do tabaco dos dedos do pai e crostas nos braços, por aqui, por favor, cuidado com os pés, não pisem as camas, parecem cartões, eu sei, ali ao canto está o couraçado Korzhev, que se deixou ficar, com os ícones na lapela, sigam-me, é um deserto meio russo e traz o barulho do mar nos bolsos, atenção, cavalheiro, saia de cima do cobertor, vejam, ali, ali ao fundo, uma genuína senhora de fato, que ainda há poucos meses andava a alcatifar o mundo, minhas senhoras e meus senhores, e ainda tem na voz restos da sua vida anterior, do tempo em que havia casas. Palmas, por favor. 

E eu? Eu sou o Jorge, também invisível como qualquer fantasma, vivo nas ruas. Obrigado, obrigado, e agora, se me permitem, vou comer a minha sopa que está a arrefecer há tantos anos.»


Daqui: Wook


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